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sexta-feira, 29 de julho de 2016

mundos mudos

num corredor
por onde corre
a cada dia
nossa correria
meus passos
desavisados
encontraram os seus
desinformados
sem horário certo
sem aviso prévio
presos a um prédio
nossos mundos
antes sem laços
juntos
num só espaço
mundos rodeados de vácuo
mundos sem muros
mundos mudos
ficamos presos
naqueles dois segundos
em meio ao nosso gritante
silêncio surdo-mudo
até que
nossos segundos
correram pelo corredor
foram embora
e a essa hora
já demos as costas
queria voltar e dizer
desculpa mas você
esqueceu seu rosto
em minha memória
e distraído
esqueceu de esquecer
seu nome no meu
ouvido
só que agora
do fim do corredor
tudo o que vejo
são os rastros
dos nossos passos
próximos a cada
porta azul
meus passos
rumo ao norte
os seus
ao sul


sexta-feira, 15 de julho de 2016

papel desgastado

Querida Indra-do-futuro,

Eu sei; nesse momento, você deve estar muito ocupada. Só não sei exatamente com o quê. Isso depende de quando é o dia de hoje aí no futuro. Se o hoje daí for no ano de dois mil e vinte, sei bem o que está acontecendo: você está nos últimos semestres da faculdade de Letras. Ao seu lado, uma pilha de apostila espera pra ser lida, mas você tenta fingir que não a vê: está envolvida numa longa faxina à procura de uma apostila tão antiga quanto esse seu vestido verde e essa sua estante de livros. Em meio a espirros e suspiros, a livros e artigos, está você, ignorando a alergia, o começo do fim do dia e, claro, a pilha de apostila, perdendo não só o tempo, a paciência e o juízo que te restava, mas também a esperança de encontrar o que te levou àquela estante lotada de passado empoeirado. Até que encontra um papel dobrado, amarelado, desgastado pelo tempo, desiludido da própria utilidade e conformado de que em pouco tempo vai ter um saco de lixo como nova moradia. É quando seu coração acelera sem pretensão de frear, tendo como combustível litros de ansiedade e alívio. Enfim encontrei a apostila, você pensa. Foi quando, ao abrir o papel desgastado, você encontra essa carta escrita por mim, sua versão do passado – ou do presente, no meu caso -. Um freio brusco no batimento cardíaco antes acelerado. Um caminhão com toneladas de frustração choca no seu fundo. Você pensa: acabou-se o mundo.

Pensei em me desculpar por representar tamanha decepção. Por não ser a apostila que você tanto sonhava. Por ser só uma carta antiga e – talvez você pense – mal escrita. Por te fazer acreditar que uma mera batida no fundo resulta no fim do mundo. Mas decidi não o fazer, Indra-do-futuro. Por dois motivos. O primeiro é que hoje, quinze de julho de dois mil e dezesseis, li um texto de Audre Lorde do qual eu preciso te lembrar. Conheço bem sua (nossa) má memória. O segundo motivo é que se você já chegou até o segundo parágrafo desse texto, é porque não está assim tão decepcionada e desinteressada diante dessa carta. Assim como não está assim tão interessada nessa tal apostila antiga.

“Ao tomar forçadamente consciência da minha própria mortalidade, (...) do que mais me arrependi foi de meus silêncios. O que me dava tanto medo?” questiona Lorde, fazendo com que eu me questione e queira te questionar: o que me dava tanto medo, Indra-do-futuro? O que me dava tanto medo? Talvez eu esteja te superestimando, mas o fato é que acredito que você tenha lido muito ao longo desses anos. Não só lido, mas também vivido. Lido e vivido a ponto de, quem sabe, ter conseguido encontrar, em alguma linha ou esquina, certas respostas. Sei exatamente a imagem que foi projetada em sua mente ao ler essa frase. Não é coincidência que, na tela da minha mente, essa mesma imagem tenha sido exibida (talvez um pouco mais nítida). Sei que você também se viu pálida, magra, abatida, apática. E calada. Você se viu adolescente, doente. Você já era apaixonada pelo poder das palavras. Mas, insegura como era, temia usá-lo. Preferia deixar essa tarefa pra Gregorio, seu ídolo supremo desde dois mil e já não lembro quando. As palavras dele eram lidas, relidas, admiradas, decoradas. Mas suas (nossas) palavras, coitadas, estavam prestes a morrer asfixiadas. Quando imploravam para sair, eram algemadas. Tentavam fugir, achar uma brecha na grade trancada, gritavam, esperneavam, mas eram ignoradas. Tratadas como crianças malcriadas, quando não passavam de recém-nascidas implorando pela vida. A tirania do silêncio, como define Lorde, te calou até o minuto anterior ao último minuto.

Só no minuto antes do último minuto, ao perceber que o silêncio nada mais faz do que desviar nosso olhar dos nossos medos, você criou coragem de verbalizar sua dor, de dar liberdade às suas recém-nascidas. Hoje percebo que tirar as algemas que lhes prendiam no minuto antes do último minuto foi o que fez o último minuto deixar de ser o último minuto. Em outras palavras, aquelas palavras antes algemadas, quando liberadas, tiraram a sua (nossa) vida das algemas de uma doença. A transformação do silêncio em palavra te fez encontrar, entre vírgulas, verbos e advérbios, a força de que você precisava.

Lorde, após ter coragem de transformar seu silêncio em linguagem, diz ter se dado conta de que não devia ter medo, o que faz com que eu me dê conta de que discordamos em um ponto. O medo não só vai existir. O medo deve existir. O medo das palavras é o que nos faz pensar em como seria a possibilidade de verbalizá-las. À princípio, pensamos que seria um perigo. Que seria horrível. Mas logo depois percebemos que estávamos certos desde o início: é um perigo. É horrível. Mas vale a vida correr esse risco.

Por isso, Indra-do-futuro, venho te fazer um pedido. Sei que você está muito ocupada à procura de uma apostila antiga. Sei que a vida anda corrida. Que tem os estudos, o namorado, a família, os amigos. Que tem o futuro, a profissão, as entradas nos documentos, os exames, o imposto de renda. Mas tem a escrita. E a vida. E é a escrita que traduz a vida. E a vida pode sempre ser salva pela escrita. A escrita adiou o último minuto. Além de ter transformado Gregorio, que era só ídolo supremo, em ídolo-amigo. Ou amigo-ídolo. Quanto à supremacia, espero que continue tão firme e forte quanto era em dois mil e já não lembro quando.

O que venho pedir, Indra-do-futuro, é que você não asfixie as palavras. Não as fixe em grades trancadas. Não as cale sob almofadas. Escreva o que precisa escrever. Não deixe de dizer o que precisa dizer.

“A morte não é mais do que o silêncio final. E pode chegar rapidamente, agora mesmo, mesmo antes de que eu tenha dito o que precisava dizer.”

Espero que encontre a apostila antiga. E que não perca a escrita. E cuidado com a alergia.


Indra-do-presente.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

em cima do muro

Era noite. Pelo menos era o que o relógio do meu celular afirmava. Mas horário em relógio de celular é como notícia em jornal global: está sempre suscetível a panes no sistema ou à manipulação nociva das mãos humanas. Assim como os jornais dizem A quando a realidade é B ou C, aquele relógio podia estar dizendo vinte e três horas, mas a verdade ser onze, ou treze, ou quinze. Por via das dúvidas, é sempre bom checar em uma outra fonte. Nos dois casos.

Mas, naquela noite – se é que já era noite – não havia nenhuma outra fonte que dissesse que era noite além do relógio do meu celular. O céu estava bem ali, mas a escuridão que caracteriza a noite era substituída por uma luz azul, que logo se transformava em vermelha, que segundos depois virava verde, e então ficava branca, e amarela, e roxa. E então voltava a ser azul. E piscava agitadamente, acompanhando cada acorde de cada instrumento, numa eficiência inacreditável. O som vinha do pequeno palco e as luzes, que tinham o mesmo ponto de partida, pegavam carona, até que ambos se chocavam com a multidão.

Multidão que, diga-se de passagem, não parecia assim tão preocupada com o ritmo do som. Uns iam da direita para a esquerda, dois passos pra lá, dois pra cá. Outros, da esquerda pra a direita, dois pra cá, dois pra lá. Iam pro mesmo sentido: é agora. Vão se chocar. Se chocam. Mas fingem que não se constrangem com isso. Dois pra cá, dois pra lá. Deixam o choque pra lá e continuam a dançar. Uns tão sós quanto o número um. Outros em par. Gente avançada na arte do dois pra lá, dois pra cá. Gente estando ali só para postar que está lá. Gente cantando alguma música qualquer que nem mesmo sabe qual é. E gente sentada em cima de um pequeno muro, observando tudo, pra depois transformar aquele contexto em texto.

Sentada em cima de um muro, observando tudo, os passos bem dados e os passos desastrados, as expressões emocionadas, as entusiasmadas e as entediadas, eu me sentia em casa. Eu, que nasci e cresci sem o dom do “dois pra cá, dois pra lá”, e já conformada com a condição de pé de chumbo, me alegrava simplesmente em observar a alegria na expressão dos que nasceram, cresceram e, naquela festa no Pelourinho, exibiam a leveza nos pés.

Ali, em cima de um muro, pude entender que é exatamente essa a perspectiva que a anorexia nos dá da vida. Mas sem a parte da alegria, do riso pela diversão do outro. A anorexia nos coloca em cima de um muro de onde podemos observar o mundo. E só. Sem se alegrar com a alegria alheia - ou muito menos com a própria, que deixa de existir. Presos em nós mesmos e em nossos medos, sem jamais participar ou interagir com o que acontece do lado de fora. A gente só se cala e para pra ver a vida passar, enquanto nossos conceitos distorcidos fazem a palavra ver se tornar sinônimo de viver.

Um dia, cansei. Doeu ficar em cima do muro por tanto tempo. Assim como doeu sair. Foi um longo e exaustivo trabalho convencer meus pés a seguirem em frente. Mas, se não tivesse feito isso, ainda estaria só vendo a vida. E não vivendo. Não estaria me divertindo – a meu modo – numa festa no Pelourinho. Não estaria rindo de mim mesma ou com o riso dos outros. Não lembraria a importância do riso. Não perderia o medo dos riscos. Semana passada, fui ao cinema com uma amiga. Ontem, fui a casa de outra amiga. Amanhã a gente vai sair. E semana que vem é o início de um longo e significativo capítulo da minha vida: a universidade. Isso é sair de cima do muro. É entender que a vida não é um filme a que a gente assiste. É uma peça de improviso em que a gente atua.

Agora caminho revezando entre passos bem dados e passos desastrados, expressões emocionadas, entusiasmadas e entediadas. Não só observando o mundo, mas participando de tudo. Digo, menos da dança.

sexta-feira, 1 de julho de 2016

lições de minecraft

Andava pela casa. Perambulava à procura de nada. Ou talvez estivesse ocupada, ocupadíssima, com a inadiável missão de buscar um copo de água. Parecia não só concentrada, mas preocupada, talvez pensando na enorme lista de coisas que tinha pra fazer até o fim daquele dia. Como se aquela lista não estivesse vazia. Foi quando, no corredor, a poucos passos do meu quarto, minha inexplicável expressão de concentração se desfez inusitada, inesperada, abruptamente, diante do susto ao ver aquele pequeno ser que, de repente, surgiu em minha frente.

Em pé, de braços abertos, suas duas pequenas mãos tocavam firmemente as paredes do corredor, impedindo que eu desse sequer um passo a frente. Ele tem a metade da minha idade e quase a minha altura (não, a altura dele não está avançada. Acho que a minha é que tá atrasada). Logo, o respeito que a minha idade poderia impor é retirado pela minha altura, que nos iguala. Aproveitando-se da nossa igualdade – ou melhor, da minha falta de superioridade -, meu primo Felipe tinha uma solicitação a que eu era obrigada a atender caso quisesse ser permitida a seguir o trajeto rumo ao meu quarto: “Inha, escolhe alguma coisa pra eu construir no Minecraft!”

Despreparada como quem é abordada na blitz pela primeira vez e ultrapassada como quem começa frases dizendo “na minha época”, fiz uma pergunta da qual não me orgulho nem um pouco: “como é isso de Minecraft?” Não satisfeita, continuei: “como assim construir alguma coisa? Alguma coisa de que tipo?”

Na minha época, não sei se as crianças eram assim tão pacientes com gente ultrapassada como, naquele momento, Lipe foi comigo. Prontamente ignorou as minhas perguntas dignas de vergonha e explicou, mais paciente do que imaginei que poderia ser, o que seria Minecraft e que tipo de coisa construiria. E então retomou o pedido: “Vai! Escolhe qualquer coisa que eu construo!”.

Senti que seria dolorosamente frustrante responder algo tão simples como uma casa, tão irrelevante quanto um objeto, tão clichê quanto um carro. Precisava corresponder à expectativa que elevava sua doce voz infantil e fazia crescer seus olhos puros e ansiosos. “Já sei! Um clube!” “Com gente ou sem gente dentro?”, ele respondeu com a mesma expectativa e ansiedade, nem um pouco apreensivo com o desafio, talvez ainda mais agitado. “Com gente, claro!”.

Foi nesse exato momento que a animação dos seus olhos sofreu uma inusitada queda, assim como sua voz, agora desanimada: “Com gente? Tem certeza? É que, com gente, tenho que colocar um monte de aldeão. E eles ficam olhando o tempo todo. E fazem um barulho muito chato. Com gente, é bem mais difícil.” Ênfase no bem.

Como qualquer um que começa uma frase com “na minha época”, eu não imaginava o que o monte de aldeão ficaria olhando o tempo todo ou como seria o barulho que o monte de aldeão faria. Até porque eu nem sabia o que seria um monte de aldeão. Mas não pude ignorar a expressão de preocupação que surgiu em seu rosto: “Então deixa pra lá. Faz uma casa. Ou um objeto. Ou um carro.”

Aprendi como era isso de Minecraft, que tipo de coisa se constrói no Minecraft, o que o aldeão olha o tempo todo, qual o barulho muito chato que o aldeão faria e até o que seria um aldeão. Mal sabia eu que ainda aprenderia mais uma coisa, talvez a melhor coisa de todas essas coisas, certamente a mais profunda de todas elas. Uma coisa que muito se ouve, da infância à vida adulta. E pouco se faz. Pelo menos na vida adulta. “Eu falei que fazer um clube com gente seria difícil. Mas não é porque é difícil que eu não vou fazer.”
Sábios são esses seres, miúdos em estatura, mas gigantes de alma. Esses seres que têm o poder de guardar, em corpos tão pequenos, uma imaginação infinita. Além do talento raro de diferenciar as palavras difícil e impossível.

Felipe tem metade da minha idade, quase a minha altura e o dobro da minha sabedoria.

Fim de papo. Eu já estava permitida a ir pro meu quarto. Ele foi construir o clube. Com gente. 

sexta-feira, 24 de junho de 2016

o feminismo é preciso?

Tinha gente, tinha carro e tinha gente dentro e fora dos carros no posto de gasolina que fica em frente ao prédio do pré-vestibular, onde a aula estava longe de chegar ao fim, diferente daquela tarde que já estava prestes a partir. Em frente ao pré-vestibular e ao lado do posto de gasolina, um pequeno mercado movimentado, compensando a solidão da enorme igreja vazia. E, num dos lados desse cenário bem montado, estava eu, sozinha. Sozinha vírgula: tinha gente, tinha carro e tinha gente dentro e fora dos carros ao meu redor. Mas eu não conhecia um só rosto que via. Portanto, embora acompanhada, eu estava sozinha. Ou vice-versa.

Meus pés estavam estacionados no passeio. Mas meus olhos acompanhavam os carros que corriam na pista, esperando que os papéis se invertessem. Quando enfim a correria dos carros cessou, dei os primeiros passos rumo ao passeio em frente, talvez mais hesitante do que decidida. Já andava no meio da pista quando uma voz que vinha do passeio para onde eu estava indo chegou ao meu ouvido: Vem! Pode vir! Vem logo!, gritava o sujeito de voz e rosto desconhecidos. Eu estava prestes a concluir que aquilo nada mais era que uma ajuda gentil, quando ouvi essa mesma voz se dirigindo a mim com termos que eram o avesso do que entendemos como gentileza. Àquela altura, poucos passos me separavam do passeio onde estava não só o ponto de ônibus aonde eu queria chegar, mas também o sujeito que eu temia encontrar. Era tarde pra hesitar e voltar. Cheguei ao passeio e os gritos ainda chegavam ao meu ouvido. O sujeito, que agora estava alguns passos atrás de mim, repetia aqueles gritos que nós todas diariamente ouvimos. Aqueles gritos que simbolizam o preço, a punição, o pagamento pelo que diariamente fazemos: ser mulher.

Aqueles gritos que têm o poder de fazer nossos passos acelerarem ao máximo. O poder de fazer nossas mãos tremerem com o pavor que congela o coração e amplifica a pulsação. O poder de calar nossa fala, de tirar nossa calma. O poder de nos fazer acreditar que não temos poder.

Cheguei ao ponto de ônibus arfante, trêmula, certamente pálida e nunca me vi tão feliz e aliviada por ter encontrado um colega. Parei ao seu lado e logo improvisei uma conversa, próxima a ponto de preferir explicar a situação para que a proximidade fizesse sentido. Próxima o suficiente para que o sujeito, que agora passava em frente a mim, seguisse direto sem sequer olhar para o meu rosto. Afinal, eu estava ao lado de um homem que, por ser homem, não tem preço, nem punição, nem pagamento por ser homem. O sujeito seguiu em frente, ignorando o homem ao meu lado – e a mim, por tabela. Mas será que esse seria o desfecho dessa história se eu estivesse sozinha?
O feminismo é exatamente sobre isso. Não sobre ódio à figura masculina. Não é uma luta por superioridade. Mas por igualdade. É uma luta para que a gente seja respeitada não por tabela, mas por ser gente. A luta para que nós não estejamos sob perigo cada vez que estivermos andando por aí sozinhas. Para que a gente deixe de ser constrangida, intimidada e objetificada sem que para isso seja necessário ter a sorte de encontrar um homem conhecido num ponto de ônibus. Feminismo é sobre a gente entender que não deve haver poder que nos faça acreditar que não temos poder. O título desse texto é uma pergunta: feminismo é preciso? Desculpa responder com outra pergunta, mas será que ainda é preciso responder a isso? Essa questão, eu passo. O x já está claro. Não é preciso nenhum cálculo para encontrá-lo.

Feminismo é sobre ser livre. Livre dos gritos externos. Mas também livre dos nossos gritos internos. Ou seja, é também uma luta contra cobranças que nós estamos condicionadas a fazer a nós mesmas. Cobranças alimentadas pelos padrões, pressões, vaidades e futilidades midiáticas. E é exatamente aí que está a questão de nível avançado dessa prova. A questão que vale mais pontos e que muitos deixariam para responder por último, depois de raciocinar, calcular, apagar e não encontrar o valor de y: afinal, como uma pessoa que teve anorexia pode ser contra vaidades da mídia? Como uma pessoa que teve anorexia é contra gritos e pressões internas, se isso é o que lhe motivou?

Algo me diz que a questão de nível mais avançado foi mal formulada: quem foi que disse que anorexia é sempre relacionada à vaidade, à futilidade, à mídia? Anorexia nunca é uma escolha. Anorexia não é estilo de vida. É, muitas vezes, uma tentativa mal sucedida de controle de uma situação, de fuga de um medo, nada tendo a ver com imagem, com vaidade.
Olha só que boa notícia: logo a última questão, a de nível avançado, não faz o menor sentido. Não há como achar o valor de y. Vai ter que ser anulada. Ponto de graça. Ou, no mínimo, ponto redistribuído. 

sexta-feira, 17 de junho de 2016

tema proibido

“Talvez esse tema, comida, seja o tema mais...”, então suas mãos, que gesticulavam, de repente pausaram, como se cedessem toda a agitação ao cérebro, que precisava trabalhar rapidamente para eleger o tema “comida” ao título certo, ao posto mais adequado. Sentados ao seu lado, seus amigos – ou meros conhecidos - se mantinham calados, tensos como quem assiste à votação do impeachment, atentos àquela eleição cujo resultado mudaria suas vidas (ao menos era o que parecia), com olhos estacionados e ouvidos apurados, talvez ansiosos, ou impacientes, ou apreensivos. Ou indecisos. Ou tudo isso. Quando, meu Deus, chegaria ao fim essa eleição? Quantos deputados ainda diriam sim e quantos ainda diriam não? Penso que era o que eles pensavam enquanto esperavam o fim da importante eleição sobre a comida ser o tema mais... “Mais legal do mundo!”, enfim completou Fábio Porchat, dando o resultado de sua própria eleição após a eternidade daquele um segundo, num vídeo em que passaria os próximos vinte minutos falando sobre o tema recém eleito o mais legal do mundo.

O resultado foi visivelmente bem recebido. Seus três amigos – ou conhecidos – já não estavam mudos antes mesmo de Porchat chegar ao fim da palavra “mundo”: os três se divertiram com o resultado. Um deles fez uma piada. Todos riram. Não pela piada. Pela graça do resultado. E, provavelmente, por terem o aprovado. O índice de aprovação daquela eleição era uma unanimidade, diriam os jornais globais. Os jornais ditos mais bem elaborados. E, claro: mais manipulados.

Aquele resultado provavelmente era uma unanimidade. Mas uma unanimidade entre Porchat, seus amigos (ou conhecidos) e você que talvez concorde com eles, ou entre os amigos dos amigos de Porchat que talvez concordem com eles, ou entre os conhecidos dos conhecidos de Porchat, ou entre os conhecidos daqueles que eram amigos de Porchat. Os jornais poderiam dizer que aquela era uma opinião unânime. Mas, na verdade, aquela era uma unanimidade não unânime. Não é preciso ser um sábio para saber que aquela era uma unanimidade restrita: bastaria ser alguém que teve anorexia.

Talvez esse tema, comida, seja o tema mais... Mais ilegal do mundo. Pelo menos quando passamos a viver sob a ditadura de um transtorno alimentar. A primeira lei que somos, inconscientemente, obrigados a seguir é nunca, jamais, em hipótese alguma, interagir de maneira que faça sentido em conversas sobre comida.

Exemplos não faltam: “Mas você já comeu o bolo de Brownie com Morango da Doces Sonhos?” “Amo! Mas ainda prefiro a torta de Floresta Negra da Perini.” “Sim! Gosto. E você, Indra? Prefere qual?” “Ah, gente, não sei. Mas vocês já viram aquele que foi lançado hoje?” “O que?” “O vídeo novo do Porta dos Fundos. Amei.”

E assim agimos sucessivas vezes, escolhendo sempre qualquer resposta entre aquelas que a censura permite, ou seja, qualquer resposta que envolva qualquer tipo de coisa, menos qualquer coisa que tenha caloria. Tipo toda e qualquer comida. Podemos falar sobre o vídeo novo do Porta dos Fundos, sobre o livro novo de Tati Bernardi, sobre a música nova de Zimbra, até que deixe de haver ao nosso redor algo de novo. E aí a gente tem que se esforçar para procurar novas saídas que, como as antigas, não façam o menor sentido. De novo. Temendo a censura. De novo. Fingindo que vai fazer sentido. De novo. Cansada de como tudo isso é cansativo e repetitivo (de novo).

Não sei se aqueles que estavam ao seu lado eram seus amigos íntimos ou meros conhecidos, mas o fato é que Fabio Porchat estava no sofá de sua casa, de pernas cruzadas, os pés descalços, livre não só dos sapatos, mas do peso de uma ditadura, dos muros de uma censura. Exatamente como estou nesse exato momento: sem sapatilha, sem ditadura, sem censura. Sem anorexia. Livre pra falar com amigos íntimos ou meros conhecidos sobre Porta dos Fundos, Tati Bernardi, Zimbra. Ou comida.

Aliás, acabei de comer um sequilho de coco. Uma delícia.

sexta-feira, 10 de junho de 2016

chuveiro frio

Não houve alarme cantando. Nem alarme, nem muito menos galo. Não houve mensagem de WhatsApp assobiando. Nem mensagem, nem muito menos pássaro. Tudo o que se ouvia era o silêncio ensurdecedor que invade nossas casas todo dia, antes mesmo de o dia virar dia. Eram três da manhã. Ou dez para as quatro. Ou talvez quinze para as cinco. Não tenho como ter certeza: eu, certamente, ainda estava dormindo. Tudo o que sei é que ainda não eram seis. E que o alarme, o galo, o WhatsApp, o pássaro, todo mundo estava calado. E, mesmo que a vida ao seu redor ainda estivesse com áudio desativado, Felipe já tinha acordado. Não só tinha acordado. Pior: já tinha até levantado. E, quando você pensa que não pode piorar, você descobre que ele já tinha até saído do quarto. Calma; temos que lidar com essa situação da mesma maneira com que temos que lidar com a política brasileira: sabendo que sempre pode piorar. Porque, uma hora, piora: Felipe, não satisfeito em já ter levantado e deixado seu quarto antes das seis, já estava sob o chuveiro. Assim, como quem precisa urgentemente fugir do calor típico de janeiro. Só que era começo do mês de junho. E começo dos dias de frio. E o dia nem tinha começado a ser dia.

Acho que Felipe só lembrou do frio quando sentiu os primeiros pingos. A água gelada se chocava em sua pele e escorria, e como quem recebe um choque, ele tremia. Ardia como arde quando a água do mar esbarra numa ferida. Ardia por causa da água dolorosamente fria. Ardia como se em todo lugar houvesse uma ferida. Aos poucos, no entanto, as feridas pareciam já cicatrizadas: a água fria já não ardia. Talvez, porque, aos poucos, ia deixando de estar tão fria. O equilíbrio térmico da água fez com que o que antes era um choque doloroso pudesse agora ser um momento calmo e confortável sob o chuveiro, em que Felipe teria insights, refletiria sobre política, responderia mentalmente mensagens já visualizadas, juntaria ideias para escrever uma poesia, planejaria como seria seu dia e, claro: anteciparia o sofrimento que já imaginava que sentiria ao sair da água morna e se deparar com o vento frio do dia.

Não queria ter entrado no chuveiro tão cedo. Mas agora era a saída que lhe trazia receio. No começo, a gente nem imagina que vai arder de novo no fim. Mas a verdade é que é exatamente assim. Soa como spoiler. Mas acho que isso todo mundo já tinha percebido.

A anorexia não passa de um chuveiro ultrapassado e antidemocrático. Um chuveiro onde entramos sempre sem querer. Um chuveiro que não nos dá o poder de escolher entre as opções “verão” ou “inverno”. A água que cai dele é sempre dolorosamente fria. Eu estive por muito tempo lá. E lembro que doía, que ardia como quando a água do mar esbarra numa ferida. Uma hora, claro, tudo se equilibra. E quando a temperatura passa a estar morna, a gente chega a acreditar que é melhor se manter ali, afinal, assim, evitamos a dor que vamos sentir ao sair, como se adiar a dor fosse fazê-la deixar de existir.

Só que a água, escassa, uma hora acaba. Então a gente sai e logo se depara com o vento frio da vida. E arde como no início. Mas uma hora a vida volta a ficar morna. E já não há mais o que temer. Você já está livre, do lado de fora.
Não sei se Felipe escolheu acordar três da manhã. Ou dez para as quatro. Ou talvez quinze para as cinco. Não sei o que o fez ir até o chuveiro como quem precisa urgentemente fugir do calor típico de janeiro, mesmo sendo junho, e mesmo sendo dias de frio, e mesmo que o dia nem tivesse começado a ser dia. Também não sei o que o fez estar sob a água fria que lhe doía como uma ferida. Talvez tenham sido apenas escolhas. Apenas o fez porque quis, talvez.

Tudo o que sei é que ninguém escolhe a anorexia. Quando a gente vê, a gente já está no chuveiro, tremendo como quem recebe um choque, temendo a saída. E querendo perguntar a Felipe: “como você conseguiu se manter nisso aqui?”. Mas antes: “Por que acordar tão cedo?” 

sexta-feira, 3 de junho de 2016

o medo de Tomas

Tomas não sabia o que fazer. Via-se naquela típica situação em que precisamos decidir entre ser o que somos ou ser o que querem que sejamos. Preferia a primeira opção. Ser o que é significava escolher a verdade. Escolher a verdade, no entanto, significava pôr em risco sua liberdade. O que significava que talvez fosse melhor escolher a segunda opção. Ou não. Tomas se recusava a baixar a cabeça diante da opressão. Considerava covardia retratar o artigo que escreveu criticando o regime comunista apenas para agradar a oposição (ou seja, a maioria). Mas seu texto oferecia risco a ele mesmo. A começar pelo seu emprego. Sentado diante do seu chefe, ouvia que seria necessário refutar sua própria ideologia política caso pretendesse continuar no cargo. Foi quando disparou: “tenho medo de sentir vergonha”.

“Tenho medo de sentir vergonha”. Peço desculpas pelo spoiler, mas essa frase não livrou Tomas da pressão que o perseguia desde que tornou pública sua ideologia. Tudo o que essa frase fez foi resgatar Tomas de um livro de Milan Kundera e colocá-lo aqui, num blog sobre anorexia. Quem diria. Essa frase poderia ter ficado lá, no final da página cento e setenta e cinco, despercebida. Poderia ter sido lida com a desatenção de quem passa apressado, ignorando a beleza da vida ou a presença de uma vírgula. Essa frase poderia até ter sido esquecida, se não houvesse nela tanta semelhança com o que estamos falando aqui: a tal da anorexia restritiva.

A anorexia restritiva não se restringe ao medo de comida ou à obsessão por caloria. O que foi dito por Tomas é também um dos principais sintomas: o medo de sentir vergonha. E vice-versa. Há a vergonha de sentir medo. E não para por aí: também temos o medo de sentir medo. E, levando todas essas variações, ainda ganhamos a vergonha de sentir vergonha. De brinde. Essa parece mais uma promoção daquelas que, impulsivamente, queremos pagar sem pensar duas vezes. Mas bastaria pensar duas vezes para enxergar que aderir a essa promoção seria como aderir a uma promoção de maços de rúcula ou de Suco Tang: dificilmente alguém, em plena consciência, o faria. Só que o termo “plena consciência” é o antônimo do termo “anorexia”. Seria engraçado se não fosse trágico. Mas é tão trágico que chega a ser engraçado.

O medo de sentir vergonha jamais será uma propriedade exclusiva de Tomas: quando se tem anorexia, convivemos diariamente com esse sintoma. Ele passa a ser um inimigo íntimo. O medo de sentir vergonha passa a ser tão frequente porque a vergonha é sempre iminente: a vergonha se encontra no próprio nome da doença. Anorexia. O que você tem? Por que só vive no médico? Com o que foi diagnosticada? Por que está tão magra? Por que foi internada? Cada uma dessas perguntas teria como resposta uma mesma palavra. A palavra é a vergonha. E o medo é que ela precise ser dita, pronunciada, revelada. Por isso, cada uma dessas perguntas resgata o medo e a vergonha. E o medo de sentir vergonha.

Em anorexia, tudo o que se tem são oito letras e cinco sílabas. Ainda que designe uma doença grave, a palavra anorexia não passa de uma palavra. Garanto que pronunciar “anorexia” não traz risco de vida. Dizer “anorexia” não traz o gosto amargo de rúcula, ou artificial de Suco Tang. Nem mesmo os dois gostos juntos (acho que isso só acontece mesmo quando pronunciamos o nome daquele presidente do adeus à democracia, do implante capilar. Esse nome, sim, temos que Temer pronunciar). No entanto, fugimos da palavra anorexia como se ela tivesse sido terminantemente proibida. Alguns evitam porque parece confortável se manter na zona de conforto em que a doença nos coloca, onde adquirimos a ideia distorcida de que não se trata de anorexia, de que lá estamos protegidas, quando tudo o que fazemos é fugir da vida. Tem gente que evita assumir a doença por ter a certeza de que a palavra anorexia, ao invés de ser ouvida pelos outros com empatia, vai ser recebida como um passaporte que pudesse garantir a quem ouve o direito de fazer qualquer crítica desprovida de conhecimento – e lotada de julgamento.  Mas não é só a vítima da doença quem a evita: a palavra anorexia é ainda mais omitida do que discussões sobre drogas ilícitas. Mais engavetada do que a corrupção da política.

O mundo parece estar mudo para essa palavra, tornando-a omitida, engavetada. E não é fácil lutar contra o silêncio de um mundo mudo e quase ensurdecido, porque a voz da minoria não chega ao seu ouvido. Não é fácil assumir a batalha contra a anorexia porque a anorexia ainda é um tabu dos mais tabus. É tanto um tabu que nem é visto como tabu. É um tabu inclusive na lista dos tabus. Um tabu pouco entendido, pouco discutido, mas muito tido. Pouco ouvido. Pouco assumido. Mas muito vivido.
É exatamente por isso que estou aqui: porque só sendo desconstruído, vai começar a ser plenamente entendido. E ativamente combatido.
E para isso, é preciso discordar de Tomas. É preciso não ter medo de sentir vergonha. 

sexta-feira, 27 de maio de 2016

saindo do armário

Parece confortável ver a vida através da brecha da porta entreaberta de um armário. É fácil imaginar como é confortável: pense que, nesse momento, a chuva alaga a sua rua. O som da água dando socos no asfalto chega até o seu ouvido. Mas não importa: você até gosta de ir dormir ouvindo esse ruído. Pela janela, você pode ver a intensidade com que caem os pingos. Mas não importa: eles não te alcançam. Vão apenas se arrastar no seu vidro. O que é ótimo: ele já não estava mais tão limpo. Nesse momento, a cidade está dividida: uns estão molhados, andando por aí apressados. Outros estão em seus carros, estressados, atrasados, porque o trânsito está congestionado. Será que chego a tempo? Meu compromisso é às sete e meia. Mas ninguém chega no horário marcado. Todos chegam às oito. Mas já são nove. Aliás, por que o trânsito congestiona quando chove? Estão todos apressados, estressados, atrasados. Foi quando viram uma luz no fim do túnel. Não, não era uma solução para o atraso. Era só um raio. O céu está prestes a cair lá fora. Mas não importa: você não se molha. Você está no seu quarto, intocável. Não parece confortável? Pois é. Isso é viver dentro do armário.

Ninguém escolhe viver dentro do armário. A gente entra meio sem querer, sem perceber. A gente entra dizendo fazer o quê? O armário parece um lugar agradável quando o mundo parece não nos dar espaço. Aliás, quem pensa que o armário é um lugar pequeno, está enganado. O armário a que me refiro não é como os dos nossos quartos, em que nossas roupas vivem brigando por espaço – e, por isso, nunca estão muito bem arrumados. Falo sobre um armário em que há mais pessoas do que roupas (até porque nem todas essas pessoas estão usando roupas). Um armário que comporta gente que não se comporta como se comporta quem vive do lado de fora. Um armário onde quem entra sempre traz consigo ideologia não declarada, ou bandeiras não levantadas, ou vivências não compartilhadas.

Esse armário comporta gente diferente. Mas todos estão lá por um mesmo motivo: todos estão cansados do uso abusivo de eufemismos – isto é, a substituição de palavras ou termos considerados inadequados por palavras ou termos considerados mais adequados, mais agradáveis, mais leves, mais aceitos pelo mundo que não os aceita. O eufemismo já não é só dizer “bater as botas” ou “bater as asas” ou “ir desta para melhor” quando se quer dizer “morte”. É também dizer “impeachment” quando se deve dizer “golpe”. É dizer “mera piada” quando se deve dizer “atitude racista”. É dizer “brincadeira inofensiva” quando se deve dizer “homofobia”. É dizer “doença da moda” ou “vaidade” quando deve dizer “anorexia”. 

Todos os que migraram para o armário o fizeram por saudade de liberdade. Por sede de falar a verdade. Para fugir de um mundo no qual a comunicação é feita através de eufemismos. Eufemismos que deixaram de ser figura de linguagem e passaram a ser vícios. Mais que vícios: conceitos distorcidos. 
No armário, parecemos estar protegidos de tudo isso. Dos raios, dos pingos. Isso é viver dentro do armário. Não parece confortável? Parece. Mas, uma hora, a vida nos avisa: não há nada mais contraditório do que procurar no armário a solução para a saudade da liberdade. O armário nada mais é que uma fuga. É como ouvir os pingos se chocarem com o vidro e, ainda assim, fingir não saber que a chuva alaga a nossa rua.

Eu sei; há receio de sair do armário e dar de cara com um espelho. Nosso reflexo revela nossos medos. Mas, uma hora, a gente percebe que o medo de nos deparar com o lado de fora é o que faz parecer que o lado de dentro é confortável. Quando a gente sai do armário, tudo parece – literalmente – mais claro. Menos empoeirado. Só quando nos vemos livres, do lado de fora, diante do espelho, percebemos que antes estávamos presos. Não se encontra liberdade se escondendo da vida. Liberdade é, depois de mais de trinta textos, dizer: sim. Esse blog é sobre anorexia. É perceber que devemos sair do armário para mostrar ao mundo que não precisamos de eufemismos. Porque estar sob eufemismos é nada mais que estar escondido. E estar escondido não significa estar protegido.

Um dia, a gente percebe que, através da brecha da porta entreaberta de um armário, há a vida. E que, de dentro do armário, a gente pode até ver. Mas esquece de viver.

sexta-feira, 20 de maio de 2016

sobre saídas

Então, de repente, alguém se levanta e caminha até a porta. Levando consigo a informalidade de quem começaria um texto com a conjunção “então” e a espontaneidade de quem passeia pelos cômodos da própria casa, esse alguém sai da sala de aula. Sai assim, sem antes ter feito qualquer código discreto que desse a alguém qualquer justificativa, fazendo com que todos substituam a concentração por uma silenciosa indagação: estaria esse alguém indo pedir ajuda na enfermaria? Ou aquele gesto indiscreto tinha como origem o desprezo por uma aula “que não vai mudar nada na minha vida“? O professor, também desconcentrado pela série de indagação, ensaia pedir alguma satisfação. Mas desiste no ensaio. Prefere assistir ao espetáculo. Aqueles passos não tinham pressa. Pareciam bastante calmos para acreditarmos que se direcionava à enfermaria. Aquele gesto parecia fazer parte dos típicos protestos que são feitos diariamente em escolas particulares por alunos do ensino médio. Protestos extremamente válidos, relevantes e maduros de alunos que criticam a educação brasileira porque seus professores, claramente despreparados, não lhes dão notas como cortesia, só porque seus alunos, claramente injustiçados, riem de piadas de WhatsApp e as transformam em conversa paralela enquanto a aula está sendo dada. Em meio a tanto despreparo e tanta injustiça, penso naquela saída indiscreta e sem justificativa. Não a acho agradável. A porta foi aberta e fechada e, nesse meio tempo, não se ouve qualquer palavra, qualquer licença, obrigada, de nada. Não houve nada. Ainda penso naquela saída. E sei porque ainda penso. Eu não sou aquele alguém que protagonizou o protesto extremamente válido, relevante e maduro. Mas, infelizmente, percebo uma semelhança entre nós. Eu estive nesse espaço aqui. E só não me levantei e caminhei até a porta porque não existem portas em espaços virtuais. Mas, sem qualquer justificativa, eu também saí. Sem licença, obrigada, de nada. Sem nada. Sem porta, até, eu saí. Saí transformando concentração (ou preocupação) em indagação (ou ainda mais preocupação). 

Escrevi ao longo de quase toda a minha internação. Mas bastou receber alta para que eu saísse dessa sala sem falar nada, como se a alta tivesse sido para ir embora daqui também. Na verdade, percebo que sou pior do que aquele alguém. Porque, diferente dele, eu ainda prometi que voltaria. Prometi que voltaria semanalmente. Eu poderia atribuir a culpa a deus e o mundo, inclusive ao português, que coloca “mente” no fim da maioria dos advérbios, como em semanalmente, como se estivesse dando essa ordem à gente: mente! Mas não posso atribuir a culpa a deus, ou ao mundo, ou ao português. Vou atribuir à correria da vida mesmo. Ao ENEM também. E, ainda que vá soar tão válido, relevante e maduro quanto o protesto relatado no começo desse texto, vou atribuir também à correria do último ano escolar. Atribuo a culpa da minha saída sem justificativa a tudo o que vivi no último ano escolar. À pressão incessante pelo vestibular, ao cansaço pela pressão incessante pelo vestibular e à incessante repetição da palavra vestibular. Atribuo a culpa também à liberdade que conquistei depois da internação. A tudo o que, desde então, eu vivi de bom. Às idas à praia, aos novos amigos. Aos antigos que viraram novos. Aos novos que, quando percebi, já eram antigos. Atribuo a culpa também ao amor. À cada momento em que o amor ocupou meu tempo. E ao modo como ele parecia que ia dar certo. Aí não deu. E, pela primeira vez, doeu. Minha ausência foi porque a vida implorou que eu a vivesse incansável e insistentemente. Acredito que para compensar os anos que a anorexia me tornou distante dela, me fazendo esquecer de como ela é bela. Eu queria vir aqui. Queria ter transformado em palavras as coisas bonitas, doidas e doídas que eu vivi. Mas, quando eu estava a caminho, a preocupação pelas provas do colégio e pelo vestibular chegava primeiro. O bom é que, no fim, deu tudo certo. Foi um ano bonito, do qual já sinto saudade. Eu não sobrevivi: eu vivi. E toda a preocupação resultou na minha aprovação na universidade. Sinto que agora já não tenho questões a compensar com a vida. E, tendo vencido a obsessão em ter preocupação, acabei descobrindo uma nova aptidão: a corrida. Porque já não há empecilho que consiga chegar primeiro que a minha vontade de escrever. Voltei. Não, a doença que me motivou a criar esse espaço não voltou a me ocupar. Voltei justamente porque preciso contar como a expulsei da minha vida. Voltei porque abandonaria uma parte de mim se abandonasse a escrita. 

Porque, desse espaço aqui, dessa sala, eu espero nunca receber alta.